quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Distribuir terra na Amazônia não é fazer reforma agrária

MEIO AMBIENTE Greenpeace revela acordo entre Incra e madeireiras para explorar floresta em áreas de assentamentos

Porteira: falsos assentamentos e empresários criam infra-estrutura para explorar região - Reprodução
Rui Kureda de São Paulo (SP)


NO DIA 10 de agosto, o governo federal anunciava a boa notícia de que a taxa de desmatamento na Amazônia havia caído pelo terceiro ano consecutivo.A área desmatada entre agosto de 2005 e julho de 2006 foi de 14 mil km2, uma queda de 25% com relação aos 12 meses anteriores. Entretanto, apenas uma semana depois do anúncio, vieram à tona denúncias sobre assentamentos irregulares no Oeste do Pará, os quais, em vez de abrigarem agricultores, estariam sendo explorados ilegalmente por madeireiras.

Fruto de oito meses de investigação, a denúncia feita pelo Greenpeace – e veiculada pelo programa Fantástico (TV Globo) no dia 19 de agosto – revela a existência de uma “parceria” entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e as madeireiras. O primeiro destina áreas da Floresta, sob a competência de sua Superintendência Regional 30 (SR30), para falsos assentamentos e os empresários se encarregam da infra-estrutura no local, ganhando, em troca, o direito de explorá-lo.

A partir das denúncias, o Ministério Público Federal apurou irregularidades em 99 assentamentos – que abrangem uma área equivalente a Alagoas – e pediu sua anulação. Como resultado, no dia 27 de agosto, a Justiça Federal mandou interditar esses assentamentos.

Em nota, os trabalhadores do Incra da SR 30 revelam que “desde o início de 2007, os servidores vêm reivindicando mudanças na forma de conduzir a reforma agrária no Oeste do Pará, assim como maior transparência na gestão do Incra.As grandiosas metas executadas ao final de 2006 e as péssimas condições de trabalho já nos serviram de alerta”.

Tais assentamentos, na região Norte do país, vêm sendo criticados há anos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Segundo a organização, 60% dos assentamentos criados durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva foram na Amazônia. “O MST tem denunciado a política dos governos de fazer projetos de colonização na Amazônia em vez que fazer desapropriações nas áreas onde se concentram os acampamentos, como Sudeste, Sul e Nordeste”, afirma nota do movimento.

É importante também frisar que essa produção fi ctícia de números de assentados revestindo uma trama de saque das fl orestas de terras públicas vem de ordens superiores e é uma das maiores indignações do grupo de jovens funcionários recém ingressados no Incra


Para explicar essas graves denúncias, o Brasil de Fato entrevista o especialista na região Maurício Torres.

Brasil de Fato – Qual é a sua opinião sobre a reforma agrária na Floresta Amazônica?

Maurício Torres – Dentro da fl oresta não é lugar para se fazer reforma agrária.Se o local já for ocupado pelos povos da fl oresta, há que se ter o reconhecimento do seu direito ao território, não se trata de reformar nada, apenas de se formalizar uma ocupação, geralmente antiga, que é legítima. No meu entender, o melhor instrumento para proceder essa regularização fundiária é a criação de uma Reserva Extrativista (Resex) ou mesmo de um Projeto Agro-Extrativista (PAE).Isso foi feito nas áreas de várzea do Oeste do Pará e há que se admitir a boa e pioneira iniciativa do Incra ao regularizar e dar segurança a essas ocupações.

Porém, na região Oeste do Pará, viajando pela BR-163, encontramos imensas áreas completamente degradadas por gado (ao sul) e soja (nas proximidades de Santarém). São latifúndios em que, muitas vezes, unem-se crime ambiental, trabalho escravo e grilagem de terras públicas, terras do Incra que foram federalizadas para a reforma agrária. Nesses casos,entendo a retomada dessas terras públicas e sua (evidente) destinação à reforma agrária como uma obrigação do Incra.São terras próximas aos centros urbanos e às estradas, com melhores condições de infra-estrutura e logísticas, onde a criação de assentamentos não trariao menor dano ambiental e ainda poderia gerar alguma recuperação, como a das matas ciliares, por exemplo.

Em 2005 e 2006, não há um único assentamento no Oeste do Pará que tenha sido resultado da retomada da posse de terras griladas e desmatadas. Sobrepondo-se o mapa dos projetos criados a imagens de satélite, percebemos que muitas vezes o assentamento contorna o pasto do grileiro com preciso cuidado para não tocá-lo e fi ca limitado a área coberta por florestas onde o grileiro não desmatou.
 
Sobrepondo-se o mapa dos projetos criados a imagens de satélite, percebemos que, muitas vezes o assentamento contorna o pasto do grileiro com preciso cuidado para não tocá-lo

Qual sua opinião sobre a reação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)?

Fico espantado ao ver a resposta do Ministério às denúncias do Fantástico, quando diz que “o MDA vem retomando áreas griladas e assumindo a responsabilidade de incentivar a recuperação de grandes extensões de terra, com uma ocupação sustentavelmente planejada e socialmente justa”. Talvez estejam com processos de retomada de terras, mas, como mostram os Laudos Agronômicos de assentamentos como o Programa de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Renascer II, o Projeto de Assentamento Comunitário (PAC) Bom Sossego I e outros, o Incra tem pleno conhecimento de que a área está completamente invadida por madeireiros e pecuaristas e não há providências efetivas no sentido de se retomar a área. Que eu saiba, o único assentamento que teve ação de reintegração de posse impetrada foi o PDS Santa Clara e, mesmo assim, muito tempo depois de sua criação. O detalhe mais pérfi do é que o Santa Clara foi criado para receber assentados do Projeto de Assentamento(PA) Moju, que foram proibidos de plantar pelo próprio Incra em função de terem se negado a vender madeira para umadeterminada empresa, segundo conta o presidente da associação que representa essas famílias, Francisco Chagas.

Há ainda outra coisa: a rigor, não podemos chamar de reforma agrária a destinação de terras públicas. Na região da SR30, a imensa maioria das áreas é daUnião. A fórmula de fazer reforma agrária em terra pública não é novidade, mas continua em forma: faz números sem mexer na estrutura fundiária, ou seja, preserva o latifúndio e as relações de poder nele estabelecidas. O que o governo Lula, como os anteriores, vem chamando de reforma agrária se concentra nas regiões onde há disponibilidade de terras públicas e, por isso, a Amazônia é alvo certo.Resumindo, acontece um duplo absurdo: criar assentamentos em áreas de floresta virgem e não criar assentamentos nas áreas griladas e já desmatadas.

Você diz que o Incra não criou assentamentos em áreas griladas, mas as denúncias do Greenpeace falam que eles foram criados em áreas ocupadas por madeireiros.

E eles estão certos. Não foram criados assentamentos em terras griladas por pecuaristas, especuladores simplesmente ou por sojeiros. Mas foram criados em áreas controladas por madeireiros e a pedido deles, como mostra o relatório divulgado pelo Greenpeace. Explico melhor: para se vender boi, soja ou arroz, ninguém pergunta se eles vieram de terra grilada. Para se ter guia de transporte desses produtos, não há necessidade de se provar que eles provêm de uma fazenda com a situação fundiária legal. Porém, com a madeira é diferente.Hoje, para aprovar um projeto de manejo fl orestal, é necessário apresentar provas de regularidade fundiária do local de onde se pretende cortar essa madeira.E é por isso que os projetos de manejo não são aprovados e os madeireiros estão aprontando o maior berreiro: quase ninguém tem o título da terra.

Qual foi a solução encontrada para regularizar a terra e se poder obter a licença para cortar a madeira? 

Criar assentamentos da reforma agrária. E os jornais divulgaram a verdadeira devoção com que os madeireiros da região abraçaram a causa da reforma agrária. Como mostra o documento do Greenpeace, segundo dá a entender o depoimento de Luis Carlos Tremonte, presidente do Sindicato da Indústria Madeireira do Oeste Paraense (Simaspa), à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Biopirataria, em 2006, a idéia de usar os assentamentos como área regularizada para extrair madeira teve a participação do atual presidente do Incra (Holf Hackbart) e do antigo presidente do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), Marcus Barros.

Mas com a criação do assentamento o madeireiro não perderia o controle da terra para os assentados? Como funciona essa apropriação do assentamento pelo madeireiro?

Antes é preciso entender a modalidade de assentamentos que foram criados na floresta. São sempre PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável) e o que isso quer dizer? Nesse tipo de assentamento, toda a área que será desmatada para roçados, pastos etc. concentram-se em uma só porção contínua e pode chegar a, no máximo, 20% da área total do projeto. A outra parte da área que não pode ter a floresta derrubada por corte raso, e que representa a grande maioria do todo, pode ser explorada em “manejo sustentável”, pela associação dos assentados.

A idéia, em princípio é muito boa, o problema foi a forma como as madeireiras a encamparam. Como mostraram as denúncias do Greenpeace, os próprios madeireiros constroem as associações e, por meio delas, solicitam a criação do assentamento em áreas de fl oresta primária controlada por eles. Os jornais de Santarém publicaram – dando ares de grande generosidade dos madeireiros – declarações suas oferecendo a “doação” de imensas áreas para o Incra criar PDS.Uma vez criado o assentamento, essa “associação” de assentados, que na verdade é controlada pelo madeireiro, pediria a aprovação do plano de manejo florestal, que, na realidade, seria explorado pelo madeireiro.

É muito remota a possibilidade de o madeireiro perder o controle sobre o PDS. Mesmo porque vimos nessas recentes denúncias vários assentamentos criados em 2006 e até em 2005 sem um único morador, mas em compensação,cheios de explanadas de madeireiras.E há também outra coisa, acontece certo endividamento compulsório do assentado com o madeireiro. E nisso também o Incra tem grande responsabilidade. Documentos apresentados pelo Greenpeace retratam uma realidade onde o Incra, obcecado em mostrar números, cria muito mais assentamentos do que de fato poderia implantar e aquiesce com o esquema em que o madeireiro faz os trabalhos que seriam de obrigação do Incra (incluindo, até, a demarcação do assentamento).O pagamento por isso é certo e líquido: a madeira que, por direito, seria dos assentados.

Os índices de queda no desmatamento na Amazônia não poderiam sugerir que essa política de assentamentos é pouco impactante?

De jeito nenhum. O impacto da criação desses assentamentos foi pequeno porque são, como foram chamados, “assentamentos fantasmas”, no caso dos PDS, sem assentados. A resposta do MDA às denúncias do Fantástico afi rma que “Todo o desmatamento que por acaso venha a ser constatado nas áreas da reportagem é necessariamente ilegal e clandestino [...]. Em diversas áreas da região, como é o caso do assentamento Serra Azul, citado na reportagem, o Incra denunciou desmatamento ilegal ao Ibama que tem a responsabilidade de coibi-lo”.

Realmente, nenhum dos desmatamentos mostrados pela reportagem é resultado do trabalho de assentados. E não é para menos, não há nenhum. Há casos em que os “benefi ciários” sequer podem entrar no assentamento, são impedidos por grileiros. Os desmatamentos mostrados limitam-se a explanadas de madeireiros.

Porém, é importante que se saiba: quando (e se) as 1.500 famílias constantes da relação de benefi ciários do PDS Serra Azul forem para a terra, logo de cara, se expedirá uma guia de desmatamento inicial de 3 hectares (ha) para cada um, o que resultará, de partida, num enorme desmatamento de 4.500 ha, área muito maior do que todas as clareiras juntas.Esse é o resultado da política de criação de assentamentos na floresta.

O MDA divulgou que há assentamentos vazios em decorrência do “acordo firmado entre o Incra e o Ministério Público Federal, pelo qual o Instituto se compromete em só assentar famílias depois de obtido o licenciamento ambiental, concluído o Projeto de Desenvolvimento do Assentamento (PDA) e aprovado o Plano de Manejo Sustentável”.Isso não explicaria o fato de não haver assentados nos projetos?

O acordo existe e, inclusive, determina que não poderiam ser criados assentamentos, publicadas portarias, tampouco relação de benefi ciários sem as etapas mencionadas. Isso signifi ca que o Incra descumpriu o acordo ao publicar a portaria.Como o presidente do Incra disse em entrevista ao Fantástico, as famílias não foram assentadas na área. Aí fica uma dúvida: o que é criar um assentamento para a SR30? Não é desapropriar a terra, já que só são criados em terras do Incra; não é retomar a posse, que não foi retomada em nenhum; não é fazer correr o trâmite formal das etapas de criação de um assentamento, pois, nem em um único isso foi feito; e também não é assentar as famílias que, muitas, estão esperando desde 2005 nas mais pobres periferias das cidades. Então, o que é? Basta cadastrar as pessoas no Sistema de Informação de Projetos de Reforma Agrária (Sipra) e computar as pessoas como metas cumpridas que o assentamento está criado? É importante também frisar que essa produção fi ctícia de números de assentados revestindo uma trama de saque das florestas de terras públicas vem de ordens superiores e é uma das maiores indignações do grupo de jovens funcionários recém ingressados no Incra e que representam uma grande possibilidade de renovação.


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