Rui Kureda costumava assinar muitos de seus textos, artigos e matérias como Rui Polly. O pseudônimo referia-se à personagem Pollyana. Ele dizia que foi uma ex-namorada que o identificou à personagem criada por Eleanor H. Porter em 1913 e que se caracterizava por enxergar um lado positivo até nas situações mais difíceis.
Mas Rui nunca foi um otimista incorrigível. Apenas sabia que não há situação que não seja definitiva, para o bem e para o mal. E neste último caso, mesmo quando todos os caminhos parecem bloqueados há sempre alguma brecha, alguma trilha esperando para ser descoberta, explorada, alargada. Nesse sentido, a atitude de Rui em relação à luta e à vida seria melhor definida por aquela famosa junção gramsciana do otimismo da vontade com o pessimismo da inteligência. Mas uma junção dialética, em que os dois termos se modificam mutuamente enquanto se relacionam.
É esta concepção geral que o norteava e ia contaminando aos poucos os que o cercavam no difícil trabalho da militância.
Rui era apaixonado pelo estudo, mas o academicismo lhe era mais repugnante do que a ignorância. Suas ocupações teóricas só tinham sentido para guiar sua atuação nas lutas. Nem a teoria estéril, nem a prática cega.
Dificilmente, alguém citaria uma obra, autor ou liderança importante da luta socialista mundial que ele não conhecesse. Muitos deles, em profundidade. Nenhum deles, com abnegação religiosa, por mais geniais que fossem os textos e valorosos os lutadores. E qualquer acúmulo teórico ou político precisaria servir à luta pela emancipação humana ou não serviriam para nada.
Materialista agnóstico e avesso ao sectarismo antirreligioso, sempre lembrava que a expressão “ópio do povo”, usada por Marx, era antecedida pela descrição da religião como “o suspiro da criatura oprimida, o coração em um mundo sem coração”. Desenvolveu um desapego à vida material que muitas vezes colocava em risco sua sobrevivência. Mas era uma atitude coerente com a postura política que se recusava a trocar convicções por cargos em qualquer das estruturas militantes, como sindicatos, partidos, associações. A militância tinha que ser vinculada ao mundo do trabalho, mas o mais distante possível das burocracias dos movimentos, tão inevitáveis quanto perigosas.
Para ele, o socialismo será construído de baixo para cima ou não será socialismo. Confiança demasiada nas direções, jamais. Nas lideranças parlamentares e governamentais, menos ainda. É preciso lutar cotidianamente para não se deixar enredar pelas tramas institucionais, mesmo as que ser formaram longe de governos e parlamentos. O caminho para o socialismo é libertário ou estará apenas se afastando dele. Ou se unificam as lutas contra a opressão e o combate à exploração ou nos limitaremos a reproduzir o que dizemos combater. A autoproclamação revolucionária é outro erro a ser evitado a qualquer custo. Geralmente, produto da arrogância daqueles que desprezam o povo explorado e oprimido.
Internacionalista, a pátria de Rui era a classe trabalhadora. Não apenas a que se enquadra no padrão masculino, branco, industrial, sindicalista. Mas todos os que podiam ser chamados de proletários e proletárias porque nada tinham a perder a não ser suas correntes: fossem vendedores ambulantes, garis, trabalhadores de teleatendimento, bancários, motoristas, professores, sem-terras, indígenas, quilombolas...
Todas as pessoas são intelectuais, dizia Gramsci. Rui assumia esse pressuposto de forma radical. Sempre disposto a aprender com quem quer que tivesse algo a ensinar, desde que respeitada a máxima de que todos e todas sejam igualmente respeitados. Sempre pronto a compartilhar suas elaborações e experiências em debates e textos cuja didática suavizava a profundidade de suas análises e a precisão de suas conclusões.
Nada do que é humano lhe era estranho. Rui era tão generoso na forma como tratava seus camaradas, amigos, familiares como era implacável com preconceitos, discriminações, intolerância e tudo o que tivesse o mais leve fedor da barbárie que está sempre a ameaçar nossa espécie.
Na esquerda brasileira, foi um dos primeiros a insistir na importância da causa ambiental como parte fundamental da luta pela emancipação humana da exploração de classe. Ecossocialista convicto e convincente, conquistou muitas e muitos para essa frente de combate fundamental contra a vocação suicida do capital.
O marxismo de Rui era o da criatividade revolucionária. Radical porque buscava as raízes dos problemas sabendo que estas acabariam sempre sendo encontradas em algum aspecto do fazer humano. Do mais elevado ao mais grosseiro. Era o marxismo em que “a raiz do homem é o próprio homem”, com todas as suas consequências.
A ausência de Rui é uma perda enorme. Mas teremos como abrandá-la levando à frente o combate pelas causas que ele soube defender com tanta coragem, determinação e generosidade. Rui Kureda presente!
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