quinta-feira, 9 de dezembro de 2004

Medida provisória favorece agronegócio

Célula de produção de mamona dentro da primeira etapa do projeto de fabricação de biodiesel: 
isenção tributária para todos prejudica pequeno produtor - Fotos: Rose Brasil/ABr

Aprovada isenção tributária para todos, ao contrário da proposta original, que benefi ciava agricultores familiares

Rui Kureda de São Paulo (SP)


Olançamento do Programa de Produção e Uso do Biodiesel pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, dia 6, ocorreu após semanas de intensa disputa política em torno da Medida Provisória (MP) 214, encaminhada ao CongressoNacional pelo governo federal. A disputa se deu em função do substitutivo apresentado pelo deputado Betinho Rosado (PFL-RN), introduzindo mudanças que alteravam substancialmente a MP original.

A MP 214 do governo, além de introduzir o biodiesel na matriz energética brasileira, autorizava a mistura de 2% de biodiesel ao diesel mineral e atribuía à Agência Nacional de Petróleo (ANP) a função de regulamentar e monitorar o processo de produção, transporte e armazenamento do biodiesel. Segundo o processo, após sua aprovação seria encaminhada e votada uma MP que definiria um modelo tributário específico, determinando os critérios para a concessão de desoneração tributária, favorecendo os agricultores familiares e as regiões mais pobres do país, o Norte e o Nordeste.

O substitutivo apresentado pelo deputado Rosado, além de tornar obrigatório a mistura do biodiesel, estabelecendo prazos para se chegar ao B2 (3 anos) e ao B5 (8 anos), propunha isenção tributária para todos. À agricultura familiar, na prática, restaria uma “reserva de mercado”. Diante desse quadro, várias entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), Confederação dos Trabalhadores em Agricultura (Contag), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf-Sul) e Articulação do Semi-Árido (ASA) lançaram um documento intitulado “Em defesa da MP 214 original. Derrotar o substitutivo do agronegócio”, denunciando o caráter das mudanças propostas pelo deputado, cujas relações com o agronegócio são notórias.

Além disso, na semana passada, as entidades enviaram à Presidência da República um pedido de audiência, da qual participariam os ministros da Casa Civil, Minas e Energia, Meio Ambiente, Desenvolvimento Agrário e da Fazenda.

PREOCUPAÇÕES DAS ENTIDADES

Diante da ofensiva do agronegócio, e pela necessidade de apresentar propostas visando melhorar as condições para os agricultores, iniciaram-se contatos e discussões entre as várias entidades. Apesar de posições diferenciadas, ficou claro que há convergência em preocupações e propostas diante do programa do governo. Essas entidades e movimentos defendem que o papel da agricultura familiar não deve ficar restrito ao de fornecedor de matérias-primas para as empresas. Mas que avance na cadeia produtiva, incorporando processos como a extração de óleo, nos quais ocorre agregação de valor, até chegar a controlar todo o processo de produção do biodiesel.

Outra preocupação comum está relacionada aos contratos de fomento entre empresas e agricultores.
Viabilizar um acompanhamento jurídico para que os agricultores não sejam prejudicados nos contratos é fundamental. Além disso, há o risco de se reproduzir, no caso do biodiesel, o famigerado sistema de “integração”, vigente em setores como a suinocultura, que “amarram” o produtor à empresa, tornando-o completamente dependente da agroindústria.

Essas preocupações também estiveram contempladas na resolução 49 do Conselho Nacional do Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), publicado no Diário Oficial no dia 29 de novembro (disponível na página eletrônica www.condraf.org.br), que contém recomendações e propostas à produção e ao uso do biodiesel. De modo geral, as recomendações contidas na resolução do Condraf expressam os pontos básicos para que se garanta o programa de produção e uso de biodiesel enquanto instrumento de geração de emprego e renda para os agricultores familiares, principalmente das regiões mais pobres.

A MP aprovada foi fruto de intensas negociações e discussões. O deputado Rosado retirou toda a parte tributária, que promovia isenção a todos, pequenos agricultores e grandes empresas do agronegócio, e que isentava ainda a importação de óleos vegetais para a produção de biodiesel.
Contudo, a MP aprovada manteve a proposta de obrigatoriedade do B5 num prazo de oito anos, e de B2 num prazo de 3 anos. Isso significa que em 2007 o Brasil deverá estar produzindo cerca de 800 milhões de litros de biodiesel. E até 2012 deverá, em média, aumentar a produção de biodiesel numa proporção de 400 milhões de litros a cada ano.

O caráter autorizativo, proposto na MP original, garantia à agricultura familiar e assentados tempo para se estruturarem e se capacitarem, organizativa e tecnicamente, para a produção de biodiesel, sem ter que competir com o agronegócio pelo menos num primeiro momento. Ninguém tinha ou poderia ter a ilusão de que a agroindústria ficaria de fora da produção de biodiesel, mas o fato de a mistura de 2% de biodiesel ao diesel mineral não ser compulsório, somado a um modelo tributário que privilegiaria a agricultura familiar, era um fator importante para os pequenos agricultores e impedia a inserção imediata do agronegócio na produção de biodesel.

A obrigatoriedade modifica completamente o quadro. É impensável que se possa chegar à meta de 800 milhões de litros anuais de biodiesel tendo como base somente a agricultura familiar. O deputado Luciano Zica, que votou pela rejeição da MP modificada, justificou seu voto afirmando que “inevitavelmente cairemos no colo dos produtores de soja ou dos exportadores de óleos vegetais que são aqueles que estão estruturados para nesse tempo garantir esse abastecimento, se aliviando da crise internacional que o setor do soja atravessa”.

Tem razão o deputado, pois o cumprimento dos prazos estabelecidos pela MP só poderão ser cumpridos com produções em grande escala. E o único setor capaz de proporcionar oleaginosas para produção de biodiesel em larga escala é o agronegócio da soja. Existem cálculos de que bastariam pouco mais de 10% da área plantada de soja no país para se chegar ao B2.

BENEFÍCIOS PARA USINEIROS

Até alguns meses atrás afirmava-se que o biodiesel não seria economicamente viável sem incentivos e desoneração tributária.

Mas a realidade não é assim. Em Campina Grande (PB) ocorreu o 1º Congresso Brasileiro de Mamona e Biodiesel, com participação maciça de empresários e praticamente nenhuma participação dos movimentos sociais. Basta apontar que durante os quatro dias de debates houve apenas um expositor ligado à agricultura familiar.

A Petrobras e outras empresas já anunciam tecnologias que aumentam a produtividade e reduzem os custos da produção de biodiesel, tornando-o viável economicamente sem desoneração tributária. No Rio Grande do Norte, a Petrobras está instalando duas plantas de produção de biodiesel, sendo que uma delas, que estará em funcionamento em meados de 2005, utilizará a tecnologia desenvolvida pelo professor Carlos Nagib Khalil, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Em Piracicaba (SP) formalizouse recentemente, com a presença do presidente Lula, a criação do Pólo Nacional de Biocombustíveis, que contará com investimentos milionários de empresários japoneses.

Além disso, já existem negociações para exportação de biodiesel, além de álcool. Um fato importante é a retomada de grandes investimentos para a produção de álcool para exportação.

Ao mesmo tempo, a MP 214 defende que se privilegie a rota etílica, o que significa mais benefícios para os usineiros.

Ao se aprovar as alterações do deputado Betinho Rosado, o caráter do programa de produção e uso do biodiesel sofreu uma transformação substantiva. E gerou um quadro desfavorável para a agricultura familiar, uma vez que o agronegócio já tem estrutura, recursos e tecnologia para entrar em cena.

Por outro lado, os pequenos agricultores e assentados vivem uma situação inversa. Falta informação, capacidade organizativa e técnica para a produção de biodiesel. Muitos contratos firmados entre empresas e agricultores são claramente desfavoráveis aos agricultores familiares.

Existem ainda inúmeros problemas a ser discutidos, e pontos que ainda precisam ser melhor detalhados, mas o fato é que, infelizmente, a aprovação da MP foi mais uma vitória do agronegócio. Aos movimentos sociais e entidades da agricultura familiar resta o caminho da luta para virar o jogo e criar as condições para que a agricultura familiar vá além da condição de fornecedora de oleaginosas para as empresas.

Plantação de mamona, matéria-prima para a fabricação de biodiesel, em Canto do Buriti, no Piauí



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