domingo, 4 de maio de 2003

O Fantasma de Stálin

Revolutas Nº 02 - Maio de 2003

Há cinquenta anos morria Stálin, e a morte do “grande timoneiro” arrancou lágrimas de milhões de trabalhadores do mundo todo. Hoje seu nome é sinônimo de tirania e terror. Mas o seu espectro ainda ronda o movimento socialista, e exige um acerto de contas capaz de exorcizá-lo de uma vez por todas.

Talvez nenhuma personalidade do século 20 tenha conhecido um destino tão contraditório quanto Stalin. Durante décadas seu nome era pronunciado com veneração, como o “grande timoneiro” da revolução, dirigente da União Soviética, o “farol do socialismo” pelo qual milhões de pessoas sacrificaram suas vidas. Aos que querem ter uma idéia dessa verdadeira idolatria, sugiro a leitura da trilogia de Jorge Amado, “Os Subterrâneos da Liberdade”.

A denúncia dos crimes e atrocidades de Stalin, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, equivaleu a um terremoto político. Entretanto, se Kruschov e o novo grupo dirigente da burocracia soviética conseguiu apagar a aura de santidade em torno do georgiano de espessos bigodes, não obtiveram êxito em mostrar que eles eram diferentes. Dias depois do relatório secreto, a classe trabalhadora húngara se levantava contra o regime, estabelecia conselhos operários e mostrava qual era a real alternativa ao stalinismo: o poder da classe trabalhadora organizada a partir de baixo. Os tanques soviéticos enviados por Kruschov se encarregariam de mostrar, com um banho de sangue, que no processo de “desestalinização” da burocracia não havia lugar para os trabalhadores.

Mais de 30 anos depois, com a queda do Muro de Berlim e o colapso do bloco soviético, Stalin deixava de vez o Panteão das grandes personalidades e “heróis” da história para integrar o lugar que lhe era devido no rol das figuras sinistras da história da humanidade.

O vendaval político que varreu os regimes do bloco liderado pela União Soviética, destruía junto o referencial, o “modelo” socialista que, durante décadas, impulsionara as políticas de dezenas de organizações políticas e as utopias de milhões de trabalhadores.

O colapso dos regimes do leste ocasionou, num primeiro momento, uma crise na esquerda, e favoreceu a ofensiva dos ideólogos do capitalismo, sobretudo os de filiação neoliberal e vinculados ao imperialismo norte-americano. Esse fato teve conseqüências relevantes. Forneceu a justificativa para guinadas à direita de partidos no mundo todo, contaminando setores significativos do movimento operário organizado com idéias abertamente burguesas. E, de outro lado, levou muitos socialistas a considerarem a derrubada dos regimes do leste um processo de retrocesso histórico.

O desemprego e a barbárie que emergiram nos antigos países do bloco soviético, com a transição para a economia de mercado, pareceu dar-lhes razão.

Mas é necessário assumir uma posição clara a respeito. As revoluções do leste e a derrocada daqueles regimes foram, de fato, acontecimentos notáveis de importância fundamental para a luta pelo socialismo internacional.

É um equívoco imaginar que a queda do bloco do “socialismo real” significou um retrocesso que favoreceu apenas o capitalismo. Nenhum daqueles regimes do leste representava avanço em relação ao capitalismo de livre mercado, nem era mais progressista. Naqueles regimes a classe trabalhadora também era vítima de exploração e opressão, com a diferença de que os exploradores não eram capitalistas privados, mas sim a burocracia partidária e estatal que controlava com mão de ferro, através de uma ditadura brutal sobre os trabalhadores, todos os aspectos da vida social.

Alex Callinicos, em seu livro “A Vingança da História” (Ed. Jorge Zahar, 1992), mostrou como as economias daqueles regimes, supostamente superiores pelo seu caráter estatal e planejado, sucumbiram a partir das debilidades, irracionalidades e contradições que estavam presentes na base daqueles sistemas de economias de comando burocrático.

Ali as palavras ‘propriedade estatal’ e ‘planejamento’ não eram senão eufemismos para ocultar o controle estatal dos meios de produção por uma classe dominante burocrática.

A Vingança de Stalin parte I

A identificação do colapso dos regimes stalinistas com um suposto fracasso histórico do socialismo foi generalizada. Para isso contribui não só a ofensiva dos ideólogos da direita (quem se lembra de Francis Fukuyama?). Essa foi a visão defendida pelos partidos socialistas que, apesar de há muito estarem integrados na ordem burguesa, ainda guardavam algum “resquício” de socialismo, ao menos no discurso.

Assim, o colapso do stalinismo impulsionou o processo de direitização de partidos social-democratas e, obviamente, dos próprios Partidos Comunistas, ao fornecer-lhes uma justificativa. Na Itália o outrora poderoso PCI mudou de nome e se transformou num partido abertamente social-democrata.

Na Grã-Bretanha, Tony Blair extirpou do programa trabalhista a cláusula que defendia as propriedades estatais, e, uma vez eleito, concedeu autonomia ao Banco Central britânico, coisa que nem Thatcher havia ousado fazer.

Esse padrão ocorreu no mundo todo, e o Brasil não foi exceção. A quase vitória de Lula coincidiu com o período do colapso stalinista. Em 1989, após o ensaio da Praça da Paz Celestial na China, os regimes começaram a desmoronar, um a um. Naquele momento o PT era visto como um partido extremamente radical, com um perfil político classista e de defesa do socialismo. Collor usou as cenas da derrubada do muro de Berlim contra a candidatura Lula. Os patrões da FIESP, apavorados diante da possibilidade de vitória do PT, faziam terrorismo, afirmando que 800 mil empresários deixariam o país se Lula ganhasse. De fato, as propostas do partido tinham um corte anticapitalista, embora já naquele período o programa e as propostas já tivessem passado por mudanças.

Depois da derrota eleitoral, no decorrer dos anos 90, as mudanças programáticas e políticas avançaram a passos largos. Embora o PT nunca tivesse tido uma visão mais clara sobre socialismo, mantendo formalmente uma eqüidistância entre o “socialismo real” e a social-democracia, sempre manteve contatos com partidos e regimes como Cuba, a Nicarágua sandinista e regimes do leste europeu. Mas a radicalidade do partido não estava tanto nas suas definições estratégicas, mas principalmente nas propostas que defendia para o país, privilegiando a perspectiva dos interesses da classe trabalhadora. Com isso chocava-se com a classe dominante, cujos interesses se sentiam ameaçados.

A conjuntura dos anos 90 foi marcada pelo refluxo do movimento sindical e popular no Brasil, a ofensiva do neoliberalismo e a crise das esquerdas em escala internacional.

O PT, após a derrota eleitoral, não chegou a aprofundar seriamente o debate sobre o socialismo, tampouco sobre estratégia.

Mas gradativamente foi adotando concepções que identificavam o fracasso do stalinismo com o suposto fracasso de uma versão “leninista” do socialismo, incorporando posições gradualistas de matriz social- democrata. Com isso as mudanças políticas, que já vinham ocorrendo desde a década de 80, se aceleraram. A perspectiva de classe dilui-se numa perspectiva em que o foco passa a ser a “sociedade” em geral. A miséria passa a ser um problema de “exclusão social”, não mais um fator estrutural do capitalismo. O anti-imperialismo perde força, com recuos em bandeiras históricas, como as relacionadas à dívida externa e ao FMI. Já não se trata de modificar o sistema, mas de democratizá-lo. A crítica ao sistema de exploração capitalista é substituída por um desenvolvimentismo com eixo no social.

Os capitalistas já não são mais inimigos, mas “parceiros”. Enfim, mudanças que alteraram profundamente o perfil político do partido.

Os fatores conjunturais citados há pouco naturalmente contribuíram para esse processo. Mas é evidente que a pressão ideológica e política, aliada a uma política centrada na conquista eleitoral como eixo estratégico, desempenhou um papel determinante. Contudo, se as mudanças visíveis ocorridas durante esses anos já provocavam espanto e perplexidade, o recente processo eleitoral que desembocou na vitória de Lula e, principalmente, as políticas adotadas por seu governo após a posse, mostraram que eram apenas a ponta do iceberg. As políticas do núcleo dirigente da corrente majoritária do partido haviam ido muito mais longe: entravam em choque até mesmo com a s resoluções das conferências e congressos partidários.

O PT havia percorrido em uma década o percurso que havia custado pouco mais de um século à social-democracia européia. A corrente hegemônica do partido introduziu, na prática, e passando por cima das instâncias partidárias, modificações políticas que afastam ainda mais o partido do objetivo do socialismo. Vale notar que os eventos do leste europeu e a crise do “socialismo real” proporcionaram um álibi que parecia feito sob encomenda.

A Vingança de Stalin parte II

Dez anos após a queda do Muro de Berlim, o mundo presenciou o surgimento dos grandes movimentos anti-capitalistas e anti-globalização na Europa e nos EUA.

Movimentos de massas, mas com características diferenciadas, grupos políticos de várias matizes ideológicas, ONGs, grupos articulados em torno de campanhas específicas como as lutas contra a dívida externa do Terceiro Mundo, defesa do meio ambiente, etc., ganharam as ruas de Seattle num confronto que estabeleceu um marco político, desencadeando um ciclo de lutas que vem desafiando continuamente o poder das corporações e do grande capital internacional.

Esse novo movimento tinha características bem diversas dos movimentos anteriores, e seus protagonistas faziam parte, em sua maioria, da geração pós-queda do Muro. Se o stalinismo ainda sobrevivia na China e em outros países, nenhum deles era uma força ideológica capaz de influenciar esses movimentos de massas.

Mas ao mesmo tempo em que mostravam sua força, esses movimentos manifestavam as seqüelas do stalinismo que ainda permanecem sem solução. Em muitos países o movimento anti-capitalista, apesar de sua radicalização, adotam políticas e visões que ainda gravitam em torno das políticas socialdemocratas.

Em outros países, principalmente na Itália, o velho autonomismo dos anos 70 foi ressuscitado. A ressurreição de Toni Negri, velho guru autonomista, condenado à prisão sob a acusação de ter sido ideólogo das Brigadas Vermelhas, é sintomática. O seu livro Império, em co-autoria com Michael Hardt vem sendo considerado por muitos, principalmente na Europa e EUA, como uma nova referência teórica e política para a criação de uma nova esquerda.

A “vingança” de Stalin É provável que a esta altura o leitor se questione por quê falar de uma vingança de Stalin. A grande força de Stalin, desde que assumiu o controle do Partido Comunista da União Soviética nos anos 20, foi a suposta continuidade que seu “pensamento” representava em relação a Lênin, fundador do partido russo e um dos principais dirigentes, ao lado de Trotsky, da revolução de 1917. O culto a Lênin promovido por Stalin não teve apenas o papel de esvaziar de conteúdo as idéias de Lênin, mas de promover o seu próprio culto, fortalecendo a sua imagem de guardião, seguidor e continuador do “marxismo-leninismo”.

Essa identificação sempre foi rejeitada pelos socialistas revolucionários que se opunham a Stalin. Mas a propaganda stalinista, reforçada – por motivos óbvios – pelo anti-comunismo burguês, logrou transformá-la em senso comum no movimento operário mundial. Mesmo na maior parte das correntes anti-stalinistas vinculadas ao pensamento de Trotsky, permaneceu a idéia de que, no fundamental, as chamadas “conquistas de Outubro” ainda sobreviviam sob o stalinismo, em particular a economia planificada e a propriedade estatal dos meios de produção. E, além do mais, segundo essa vertente, a burocracia stalinista só conseguia se manter na medida em que não só garantisse essas conquistas, mas as desenvolvesse, obviamente, a contragosto.

Não admira, portanto, que ao se jogar fora a água suja do stalinismo, muitos – incluindo socialistas e revolucionários sinceros – tenham jogado fora junto o bebê da revolução de 1917e a tradição marxista revolucionária que corporificava. As implicações disso são muitas: negação da necessidade de revolução e de desmantelamento do Estado burguês, a defesa das instituições parlamentares da democracia capitalista contra a democracia dos conselhos, etc.

É nesse sentido que se pode falar de “vingança” de Stalin. Ao ser mandado ao inferno, de um certo modo, levou junto consigo também o socialismo revolucionário. É claro que estamos exagerando. O socialismo revolucionário, com o colapso do stalinismo, dispõe de um campo fértil para crescer, mas a marginalização sofrida durante décadas significou que pouco pôde fazer para ocupar o vazio político aberto pela crise do stalinismo. Ao contrário, num primeiro momento, foi vítima da ofensiva ideológica da classe dominante e dos partidos social-democratas.

As seqüelas do stalinismo permanecem, portanto, seja na forma de idéias e concepções stalinistas que persistem na esquerda, ou enquanto subproduto da obra de Stalin, assumindo a forma de um “senso comum” que identifica estatismo e planificação burocrática com socialismo e democracia soviética com sistema de partido único, entre outras coisas. Isso dá margem não só para os ataques da direita, mas também permite que concepções reformistas encontrem eco na militância socialista.

Exorcizando o fantasma

Considerar o stalinismo como “cachorro morto” não é, portanto, a melhor atitude. Se a crise histórica do stalinismo é uma realidade, é preciso reconhecer que o acerto de contas teórico-político com o legado stalinista é uma tarefa que ainda não foi cumprida. Para muitos esse acerto pode parecer uma simples especulação sobre o passado, pois aparentemente a incidência desse debate na atualidade está longe de ter a urgência de antes.

Salvo exceções, ninguém se volta para a China ou Coréia do Norte em busca de um “modelo” de socialismo. Mesmo Cuba, com as simpatias que desperta em amplas camadas de militantes, não cumpre tal papel.

Contudo, discutir a natureza de classe desses regimes, averiguar se de alguma forma representaram um avanço em relação ao capitalismo; indagar se podem surgir sociedades transitórias ou pós-capitalistas sem revolução e sem a ação dos trabalhadores, como ocorreu nos países do leste europeu, onde o “socialismo” foi imposto pelo Exército Vermelho de Stalin; debater se é possível transformar o Estado burguês para colocá-lo a serviço da luta pelo socialismo, não são simples discussões acadêmicas. É um acerto de contas com o passado, que não deixa de ser o nosso passado. Significa discutir como podemos derrotar o capitalismo e alcançar o socialismo, e, afinal, o que é o socialismo que queremos.

Essas e outras questões não podem ser respondidas pela simples interpretação dos clássicos socialistas, pois implica também uma reinterpretação da tradição socialista.

Será preciso optar entre Kautsky e Rosa, entre Lenin e Plekhanov, entre Stalin e Trotsky, entre Togliatti e Gramsci, enfim, será preciso reconstituir o fio vermelho da tradição do socialismo revolucionário, uma tradição que não é linear, mas contraditória e plena de tensões. Exige que nos debrucemos sobre as experiências revolucionárias do passado, resgatando as suas lições. E, principalmente, exige que o cadáver do stalinismo seja dissecado, para que o fantasma de Stalin seja definitivamente exorcizado.

Realizar esse debate é um imperativo se quisermos construir e consolidar um projeto socialista revolucionário, um socialismo a partir de baixo, que expresse de fato a auto-emancipação da classe trabalhadora.

Sugestões de leitura: Alex Callinicos, A Vingança da História (Ed. Jorge Zahar); Chris Harman, A Formação do Bloco Soviético (disponível em http:// socialista.tripod.com); Rui Polly, A Natureza de Classe da Rússia Soviética (socialista@mail.com); Duncan Hallas, O Marxismo de Trotski (http://socialista.tripod.com); Concepção de Socialismo (http:// socialista.tripod.com); Tony Cliff, Los Orígenes de socialismo internacional (www.elmundoalreves.org); Tony Cliff, Capitalismo de Estado en la URSS (ir@adinet.com.uy).

Rui Kureda

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