Revolutas
Nº 02 - Maio de 2003
Há
cinquenta anos morria Stálin, e a morte do “grande timoneiro” arrancou lágrimas
de milhões de trabalhadores do mundo todo. Hoje seu nome é sinônimo de tirania
e terror. Mas o seu espectro ainda ronda o movimento socialista, e exige um
acerto de contas capaz de exorcizá-lo de uma vez por todas.
Talvez
nenhuma personalidade do século 20 tenha conhecido um destino tão contraditório
quanto Stalin. Durante décadas seu nome era pronunciado com veneração, como o
“grande timoneiro” da revolução, dirigente da União Soviética, o “farol do
socialismo” pelo qual milhões de pessoas sacrificaram suas vidas. Aos que
querem ter uma idéia dessa verdadeira idolatria, sugiro a leitura da trilogia
de Jorge Amado, “Os Subterrâneos da Liberdade”.
A
denúncia dos crimes e atrocidades de Stalin, no XX Congresso do Partido Comunista
da União Soviética, em 1956, equivaleu a um terremoto político. Entretanto, se
Kruschov e o novo grupo dirigente da burocracia soviética conseguiu apagar a
aura de santidade em torno do georgiano de espessos bigodes, não obtiveram
êxito em mostrar que eles eram diferentes. Dias depois do relatório secreto, a
classe trabalhadora húngara se levantava contra o regime, estabelecia conselhos
operários e mostrava qual era a real alternativa ao stalinismo: o poder da
classe trabalhadora organizada a partir de baixo. Os tanques soviéticos
enviados por Kruschov se encarregariam de mostrar, com um banho de sangue, que
no processo de “desestalinização” da burocracia não havia lugar para os
trabalhadores.
Mais
de 30 anos depois, com a queda do Muro de Berlim e o colapso do bloco
soviético, Stalin deixava de vez o Panteão das grandes personalidades e
“heróis” da história para integrar o lugar que lhe era devido no rol das
figuras sinistras da história da humanidade.
O
vendaval político que varreu os regimes do bloco liderado pela União Soviética,
destruía junto o referencial, o “modelo” socialista que, durante décadas,
impulsionara as políticas de dezenas de organizações políticas e as utopias de
milhões de trabalhadores.
O
colapso dos regimes do leste ocasionou, num primeiro momento, uma crise na
esquerda, e favoreceu a ofensiva dos ideólogos do capitalismo, sobretudo os de
filiação neoliberal e vinculados ao imperialismo norte-americano. Esse fato
teve conseqüências relevantes. Forneceu a justificativa para guinadas à direita
de partidos no mundo todo, contaminando setores significativos do movimento
operário organizado com idéias abertamente burguesas. E, de outro lado, levou
muitos socialistas a considerarem a derrubada dos regimes do leste um processo
de retrocesso histórico.
O
desemprego e a barbárie que emergiram nos antigos países do bloco soviético,
com a transição para a economia de mercado, pareceu dar-lhes razão.
Mas
é necessário assumir uma posição clara a respeito. As revoluções do leste e a
derrocada daqueles regimes foram, de fato, acontecimentos notáveis de
importância fundamental para a luta pelo socialismo internacional.
É
um equívoco imaginar que a queda do bloco do “socialismo real” significou um
retrocesso que favoreceu apenas o capitalismo. Nenhum daqueles regimes do leste
representava avanço em relação ao capitalismo de livre mercado, nem era mais
progressista. Naqueles regimes a classe trabalhadora também era vítima de
exploração e opressão, com a diferença de que os exploradores não eram
capitalistas privados, mas sim a burocracia partidária e estatal que controlava
com mão de ferro, através de uma ditadura brutal sobre os trabalhadores, todos
os aspectos da vida social.
Alex
Callinicos, em seu livro “A Vingança da História” (Ed. Jorge Zahar, 1992),
mostrou como as economias daqueles regimes, supostamente superiores pelo seu
caráter estatal e planejado, sucumbiram a partir das debilidades,
irracionalidades e contradições que estavam presentes na base daqueles sistemas
de economias de comando burocrático.
Ali
as palavras ‘propriedade estatal’ e ‘planejamento’ não eram senão eufemismos
para ocultar o controle estatal dos meios de produção por uma classe dominante
burocrática.
A Vingança de Stalin
parte I
A
identificação do colapso dos regimes stalinistas com um suposto fracasso
histórico do socialismo foi generalizada. Para isso contribui não só a ofensiva
dos ideólogos da direita (quem se lembra de Francis Fukuyama?). Essa foi a
visão defendida pelos partidos socialistas que, apesar de há muito estarem
integrados na ordem burguesa, ainda guardavam algum “resquício” de socialismo,
ao menos no discurso.
Assim,
o colapso do stalinismo impulsionou o processo de direitização de partidos
social-democratas e, obviamente, dos próprios Partidos Comunistas, ao
fornecer-lhes uma justificativa. Na Itália o outrora poderoso PCI mudou de nome
e se transformou num partido abertamente social-democrata.
Na
Grã-Bretanha, Tony Blair extirpou do programa trabalhista a cláusula que
defendia as propriedades estatais, e, uma vez eleito, concedeu autonomia ao
Banco Central britânico, coisa que nem Thatcher havia ousado fazer.
Esse
padrão ocorreu no mundo todo, e o Brasil não foi exceção. A quase vitória de
Lula coincidiu com o período do colapso stalinista. Em 1989, após o ensaio da
Praça da Paz Celestial na China, os regimes começaram a desmoronar, um a um.
Naquele momento o PT era visto como um partido extremamente radical, com um
perfil político classista e de defesa do socialismo. Collor usou as cenas da
derrubada do muro de Berlim contra a candidatura Lula. Os patrões da FIESP,
apavorados diante da possibilidade de vitória do PT, faziam terrorismo,
afirmando que 800 mil empresários deixariam o país se Lula ganhasse. De fato,
as propostas do partido tinham um corte anticapitalista, embora já naquele
período o programa e as propostas já tivessem passado por mudanças.
Depois
da derrota eleitoral, no decorrer dos anos 90, as mudanças programáticas e
políticas avançaram a passos largos. Embora o PT nunca tivesse tido uma visão
mais clara sobre socialismo, mantendo formalmente uma eqüidistância entre o
“socialismo real” e a social-democracia, sempre manteve contatos com partidos e
regimes como Cuba, a Nicarágua sandinista e regimes do leste europeu. Mas a radicalidade
do partido não estava tanto nas suas definições estratégicas, mas
principalmente nas propostas que defendia para o país, privilegiando a
perspectiva dos interesses da classe trabalhadora. Com isso chocava-se com a
classe dominante, cujos interesses se sentiam ameaçados.
A
conjuntura dos anos 90 foi marcada pelo refluxo do movimento sindical e popular
no Brasil, a ofensiva do neoliberalismo e a crise das esquerdas em escala
internacional.
O
PT, após a derrota eleitoral, não chegou a aprofundar seriamente o debate sobre
o socialismo, tampouco sobre estratégia.
Mas
gradativamente foi adotando concepções que identificavam o fracasso do
stalinismo com o suposto fracasso de uma versão “leninista” do socialismo,
incorporando posições gradualistas de matriz social- democrata. Com isso as
mudanças políticas, que já vinham ocorrendo desde a década de 80, se
aceleraram. A perspectiva de classe dilui-se numa perspectiva em que o foco
passa a ser a “sociedade” em geral. A miséria passa a ser um problema de “exclusão
social”, não mais um fator estrutural do capitalismo. O anti-imperialismo perde
força, com recuos em bandeiras históricas, como as relacionadas à dívida
externa e ao FMI. Já não se trata de modificar o sistema, mas de
democratizá-lo. A crítica ao sistema de exploração capitalista é substituída
por um desenvolvimentismo com eixo no social.
Os
capitalistas já não são mais inimigos, mas “parceiros”. Enfim, mudanças que
alteraram profundamente o perfil político do partido.
Os
fatores conjunturais citados há pouco naturalmente contribuíram para esse
processo. Mas é evidente que a pressão ideológica e política, aliada a uma
política centrada na conquista eleitoral como eixo estratégico, desempenhou um
papel determinante. Contudo, se as mudanças visíveis ocorridas durante esses
anos já provocavam espanto e perplexidade, o recente processo eleitoral que
desembocou na vitória de Lula e, principalmente, as políticas adotadas por seu
governo após a posse, mostraram que eram apenas a ponta do iceberg. As políticas
do núcleo dirigente da corrente majoritária do partido haviam ido muito mais
longe: entravam em choque até mesmo com a s resoluções das conferências e
congressos partidários.
O
PT havia percorrido em uma década o percurso que havia custado pouco mais de um
século à social-democracia européia. A corrente hegemônica do partido
introduziu, na prática, e passando por cima das instâncias partidárias,
modificações políticas que afastam ainda mais o partido do objetivo do
socialismo. Vale notar que os eventos do leste europeu e a crise do “socialismo
real” proporcionaram um álibi que parecia feito sob encomenda.
A Vingança de Stalin
parte II
Dez
anos após a queda do Muro de Berlim, o mundo presenciou o surgimento dos
grandes movimentos anti-capitalistas e anti-globalização na Europa e nos EUA.
Movimentos
de massas, mas com características diferenciadas, grupos políticos de várias
matizes ideológicas, ONGs, grupos articulados em torno de campanhas específicas
como as lutas contra a dívida externa do Terceiro Mundo, defesa do meio
ambiente, etc., ganharam as ruas de Seattle num confronto que estabeleceu um
marco político, desencadeando um ciclo de lutas que vem desafiando
continuamente o poder das corporações e do grande capital internacional.
Esse
novo movimento tinha características bem diversas dos movimentos anteriores, e
seus protagonistas faziam parte, em sua maioria, da geração pós-queda do Muro.
Se o stalinismo ainda sobrevivia na China e em outros países, nenhum deles era
uma força ideológica capaz de influenciar esses movimentos de massas.
Mas
ao mesmo tempo em que mostravam sua força, esses movimentos manifestavam as
seqüelas do stalinismo que ainda permanecem sem solução. Em muitos países o
movimento anti-capitalista, apesar de sua radicalização, adotam políticas e
visões que ainda gravitam em torno das políticas socialdemocratas.
Em
outros países, principalmente na Itália, o velho autonomismo dos anos 70 foi
ressuscitado. A ressurreição de Toni Negri, velho guru autonomista, condenado à
prisão sob a acusação de ter sido ideólogo das Brigadas Vermelhas, é
sintomática. O seu livro Império, em co-autoria com Michael Hardt vem sendo
considerado por muitos, principalmente na Europa e EUA, como uma nova
referência teórica e política para a criação de uma nova esquerda.
A
“vingança” de Stalin É provável que a esta altura o leitor se questione por quê
falar de uma vingança de Stalin. A grande força de Stalin, desde que assumiu o
controle do Partido Comunista da União Soviética nos anos 20, foi a suposta
continuidade que seu “pensamento” representava em relação a Lênin, fundador do
partido russo e um dos principais dirigentes, ao lado de Trotsky, da revolução
de 1917. O culto a Lênin promovido por Stalin não teve apenas o papel de esvaziar
de conteúdo as idéias de Lênin, mas de promover o seu próprio culto,
fortalecendo a sua imagem de guardião, seguidor e continuador do
“marxismo-leninismo”.
Essa
identificação sempre foi rejeitada pelos socialistas revolucionários que se
opunham a Stalin. Mas a propaganda stalinista, reforçada – por motivos óbvios –
pelo anti-comunismo burguês, logrou transformá-la em senso comum no movimento
operário mundial. Mesmo na maior parte das correntes anti-stalinistas
vinculadas ao pensamento de Trotsky, permaneceu a idéia de que, no fundamental,
as chamadas “conquistas de Outubro” ainda sobreviviam sob o stalinismo, em
particular a economia planificada e a propriedade estatal dos meios de
produção. E, além do mais, segundo essa vertente, a burocracia stalinista só
conseguia se manter na medida em que não só garantisse essas conquistas, mas as
desenvolvesse, obviamente, a contragosto.
Não
admira, portanto, que ao se jogar fora a água suja do stalinismo, muitos –
incluindo socialistas e revolucionários sinceros – tenham jogado fora junto o
bebê da revolução de 1917e a tradição marxista revolucionária que
corporificava. As implicações disso são muitas: negação da necessidade de
revolução e de desmantelamento do Estado burguês, a defesa das instituições
parlamentares da democracia capitalista contra a democracia dos conselhos, etc.
É
nesse sentido que se pode falar de “vingança” de Stalin. Ao ser mandado ao
inferno, de um certo modo, levou junto consigo também o socialismo
revolucionário. É claro que estamos exagerando. O socialismo revolucionário,
com o colapso do stalinismo, dispõe de um campo fértil para crescer, mas a
marginalização sofrida durante décadas significou que pouco pôde fazer para
ocupar o vazio político aberto pela crise do stalinismo. Ao contrário, num
primeiro momento, foi vítima da ofensiva ideológica da classe dominante e dos
partidos social-democratas.
As
seqüelas do stalinismo permanecem, portanto, seja na forma de idéias e
concepções stalinistas que persistem na esquerda, ou enquanto subproduto da
obra de Stalin, assumindo a forma de um “senso comum” que identifica estatismo
e planificação burocrática com socialismo e democracia soviética com sistema de
partido único, entre outras coisas. Isso dá margem não só para os ataques da
direita, mas também permite que concepções reformistas encontrem eco na
militância socialista.
Exorcizando o fantasma
Considerar
o stalinismo como “cachorro morto” não é, portanto, a melhor atitude. Se a
crise histórica do stalinismo é uma realidade, é preciso reconhecer que o
acerto de contas teórico-político com o legado stalinista é uma tarefa que
ainda não foi cumprida. Para muitos esse acerto pode parecer uma simples
especulação sobre o passado, pois aparentemente a incidência desse debate na
atualidade está longe de ter a urgência de antes.
Salvo
exceções, ninguém se volta para a China ou Coréia do Norte em busca de um
“modelo” de socialismo. Mesmo Cuba, com as simpatias que desperta em amplas
camadas de militantes, não cumpre tal papel.
Contudo,
discutir a natureza de classe desses regimes, averiguar se de alguma forma
representaram um avanço em relação ao capitalismo; indagar se podem surgir
sociedades transitórias ou pós-capitalistas sem revolução e sem a ação dos
trabalhadores, como ocorreu nos países do leste europeu, onde o “socialismo”
foi imposto pelo Exército Vermelho de Stalin; debater se é possível transformar
o Estado burguês para colocá-lo a serviço da luta pelo socialismo, não são
simples discussões acadêmicas. É um acerto de contas com o passado, que não
deixa de ser o nosso passado. Significa discutir como podemos derrotar o
capitalismo e alcançar o socialismo, e, afinal, o que é o socialismo que
queremos.
Essas
e outras questões não podem ser respondidas pela simples interpretação dos
clássicos socialistas, pois implica também uma reinterpretação da tradição
socialista.
Será
preciso optar entre Kautsky e Rosa, entre Lenin e Plekhanov, entre Stalin e
Trotsky, entre Togliatti e Gramsci, enfim, será preciso reconstituir o fio
vermelho da tradição do socialismo revolucionário, uma tradição que não é
linear, mas contraditória e plena de tensões. Exige que nos debrucemos sobre as
experiências revolucionárias do passado, resgatando as suas lições. E,
principalmente, exige que o cadáver do stalinismo seja dissecado, para que o
fantasma de Stalin seja definitivamente exorcizado.
Realizar
esse debate é um imperativo se quisermos construir e consolidar um projeto
socialista revolucionário, um socialismo a partir de baixo, que expresse de fato
a auto-emancipação da classe trabalhadora.
Sugestões
de leitura: Alex Callinicos, A Vingança da História (Ed. Jorge Zahar); Chris
Harman, A Formação do Bloco Soviético (disponível em http://
socialista.tripod.com); Rui Polly, A Natureza de Classe da Rússia Soviética
(socialista@mail.com); Duncan Hallas, O Marxismo de Trotski
(http://socialista.tripod.com); Concepção de Socialismo (http://
socialista.tripod.com); Tony Cliff, Los Orígenes de socialismo internacional
(www.elmundoalreves.org); Tony Cliff, Capitalismo de Estado en la URSS (ir@adinet.com.uy).
Rui
Kureda
Nenhum comentário:
Postar um comentário