quinta-feira, 23 de julho de 2009

Estado e Revolução: o retorno

Revolutas No 26 – julho de 2009

A crise trouxe novamente o debate  sobre a estratégia. Um debate crucial que articula temas como o programa, o papel do Estado, política de alianças, os instrumentos e os métodos para concretizar os objetivos almejados. Tais questões pressupõem, por sua vez, uma análise da realidade que determinará os objetivos e tarefas a serem realizados. Essa discussão mal começou. Mas podemos encontrar algumas visões em textos e livros, como o livro “A Nova Toupeira” de Emir Sader e nas teses que serão debatidas  no II congresso do PSOL. 

Não pretendemos – e nem poderíamos – discutir tais questões aqui. Mas queremos chamar a atenção para o retorno de posições que propõem o fortalecimento do papel do estado, conferindo-lhe um papel decisivo como “indutor de um novo modelo de desenvolvimento, que aponte para a construção do socialismo”, segundo uma das teses congressuais. Ou ainda, como defende outra tese, a defesa de  construção de um Estado democrático e forte” como um dos eixos programáticos com o “objetivo ampliar as capacidades e forças em sua relação com o mercado e subjugando-o”.

Tais posições não são novas. Mas a diferença é que nos dias atuais há a experiência dos governos de esquerda da América Latina (AL), que tem se constituído em paradigmas e referências para significativas parcelas de militantes dos movimentos sociais e organizações de esquerda.

Inconsistências

Qualquer suposição de que se possa controlar o estado e colocá-lo a serviço de políticas que favoreçam a população pobre e criem condições para avançar rumo ao socialismo, deve responder algumas questões fundamentais. Uma delas é como chegar, e por quais vias, ao controle do atual estado? Talvez a resposta óbvia, tendo em conta os processos na Venezuela e demais países, seja a via eleitoral.

Mas não se pode esquecer que os governos de esquerda  da AL foram produtos de circunstâncias concretas.  Durante o primeiro governo de Chavez não havia uma “revolução bolivariana” em curso. O marco do seu surgimento foi o amplo movimento de massas que salvou Chavez dos golpistas que o haviam seqüestrado em 2002. Da mesma forma, na Bolívia, a eleição de Morales em 2005 expressou a radicalização da grande revolta popular que em 2004 obrigou Sanchez de Lozada a fugir do país.

Dois aspectos merecem ser considerados. Primeiro, que os resultados dos processos latino-americanos não podem ser analisados em uma relação causal, ou seja, não podem ser considerados como conseqüências inevitáveis, uma vez que refletiram situações e correlações de força específicas àquelas sociedades. Segundo, qualquer generalização daquelas (e outras) experiências – produtos de circunstâncias concretas – em táticas ou caminhos a serem perseguidos é temerária, uma vez que se leva a implantar políticas que não correspondem  à realidade concreta do Brasil. Foi o caso das guerrilhas urbanas e rurais que tentaram repetir aqui e na AL uma estratégia que ocorreu em Cuba em uma situação completamente específica e atípica. É preciso observar o que é universal e particular em cada processo.

A idéia de que a partir do controle do estado se possa implementar um “novo modelo de desenvolvimento” exige que se explicite o que é  esse “novo modelo”. E, independente disso, cabe lembrar que ganhar o governo não significa ter o controle do estado. No caso do Brasil, o estado – e a própria estrutura social - é muito maior e extremamente mais complexo que em qualquer outro país da AL. As dificuldades seriam muito maiores, e qualquer política socializante envolveria a oposição não só da direita e do grande capital nacional e estrangeiro, mas da burocracia estatal, da mídia, dos parlamentos estaduais e locais, de setores significativos da classe média e do extenso aparelho repressivo que engloba as Forças Armadas, as Polícias Militares e Civis estaduais.

Por fim, é necessária uma boa dose de realismo ao analisarmos a situação da Venezuela e outros países latino-americanos. Não podemos nos ater aos governos, mas sim enxergar o todo, em especial a situação da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Surpreendentemente, Sader é realista quando afirma que aqueles governos são governos anti-neoliberais, mas que ainda não podem ser considerados anticapitalistas. Ele está correto.

Com relação ao governo Chavez e os demais governos, não é possível qualquer apoio acrítico e incondicional. Apoiamos as suas medidas progressistas, que confrontem o capital e o imperialismo, e que favoreçam a população. Mas não podemos apoiar medidas que tendem a apertar o controle  sobre os movimentos e a promover um papel cada vez mais centralizador do estado.

Portanto, para nós o fundamental é o fortalecimento da auto-organização e da consciência revolucionária da classe trabalhadora e dos explorados. É isso que possibilita a auto-emancipação dos trabalhadores, e não o fortalecimento do estado.

A natureza do estado

Por trás de tudo isso está o debate sobre a natureza do estado. Fala-se em tomar o estado, controlar o estado. Mas o estado não é uma “coisa” que possa ser tomada para que se modifique sua natureza conforme a vontade. A estrutura do aparelho de estado burguês expressa as relações sociais preponderantes no capitalismo, baseadas na exploração de uma classe majoritária na sociedade – a classe trabalhadora – por uma classe minoritária – a burguesia . O estado existe precisamente para manter e assegurar essas relações de exploração através dos seus vários mecanismos: parlamento, forças armadas, polícia.

É verdade que o Estado sofre mudanças. Assume formas e regimes políticos diferentes, mas até o limite da “ossatura institucional” que é o conjunto de instituições e mecanismos de poder que não são porosos à participação e controle social. Em outras palavras, o estado não pode ser modificado a ponto de garantir o controle social, com direito à eleição e revogação dos mandatos dos parlamentares, funcionários estatais, forças armadas e polícia. Emir Sader afirma que o estado é um “espaço em disputa”. Ele está errado. Só poderíamos admitir tal afirmação em termos parciais e limitados. Há espaços a serem disputados, mas não o núcleo duro do aparelho estatal. Mas ele e outros teóricos como Carlos Nelson Coutinho parecem convencidos de que é possível disputar e transformar o conjunto do aparelho de estado. Parece que muitas das lições trágicas proporcionadas por experiências históricas como o governo de unidade popular de Allende no Chile não foram aprendidas. Ou outras conclusões foram extraídas desses processos.

Para nós, as análises de teóricos como Marx, Rosa, Lenin, Trotsky e Gramsci – cuja obra do cárcere foi “seqüestrada” por Togliatti e o eurocomunismo – permanecem referências decisivas para a compreensão da natureza e do papel do estado burguês. E seus ensinamentos devem compor a base de qualquer estratégia revolucionária conseqüente que pressupõe a ruptura como capitalismo e a construção do socialismo como uma obra da maioria e não de uma minoria substitucionista que age “em nome” da classe trabalhadora ou da sociedade.

Conclusão

Finalmente, um aspecto fundamental decorre das experiências do chamado “socialismo real”. Naqueles países não havia mercado nem capital privado. A economia era controlada a partir de cima por uma burocracia que, tendo o estado sob seu controle, determinava todo o processo produtivo.  Esses regimes não caíram por conta de qualquer conspiração da CIA, mas sim por conta da dinâmica de suas economias que engendravam o mesmo tipo de contradições existentes no capitalismo de mercado. E seus governantes foram derrubados pelas mesmas massas cujos interesses supostamente representavam.

A forma estatal da propriedade não é, em si, superior à forma privada. Depende de que tipo de estado se fala, de quem controla esse estado e como se dá esse controle. Uma transição socialista só pode ser conduzida pela classe trabalhadora “alçada à condição de classe dominante”, o que significa não um Estado capitalista “forte”, mas um semi-estado, baseado em órgãos democráticos – os conselhos de trabalhadores e trabalhadoras da cidade  e do campo - que exercem o poder diretamente a partir da base da  sociedade.

Defender essa perspectiva revolucionária não nos permite alimentar quaisquer veleidades sobre controlar o estado burguês para avançar rumo ao socialismo. Mesmo que tais políticas sejam chamadas de “táticas”, não o são. Afinal, o stalinismo e os Partidos Comunistas também defenderam “táticas” - como a visão etapista de revolução e a “tática” da frente popular - que conduziram a derrotas trágicas que custaram não apenas a vida de milhões, mas a dramáticos retrocessos na luta pela emancipação humana.



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