HÁ ALGUM tempo, o papel das ONGs transnacionais, em especial na Amazônia, tem sido objetode polêmica. A publicação de A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas, de Antonio Carlos Diegues (org.), professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Ambiental da USP (PROCAM), traz uma contribuição importante a esse debate. Infelizmente, o livro não teve ainda o impacto merecido.
A coletânea traz textos escritos por diversos autores que abordam diferentes aspectos das fi losofi as e práticas de ONGs como a The Nature Conservancy (TNC), Conservação Internacional (CI) e a WWF. Ao longo do livro, somos confrontados com análises críticas, relatos e denúncias contundentes que não podem ser ignoradas.
Os títulos dos textos que compõem a coletânea dão uma idéia do foco do livro: “Um desfi o aos conservacionistas”; “Por dentro da TNC – Nature Conservancy: Arrebata bilhões”; “Filantropia faz ativos em parceria com as corporações”; “Refugiados da conservação”; “Expulsão para a Conservação da Natureza: Uma visão global”. O livro incide principalmente sobre as estratégias conservacionistas das grandes ONGs transnacionais, em particular da WWF (World Wildlife Fund), da CI (Conservation International) e da TNC (Nature Conservancy).
Estratégias que, como sabemos, têm exercido grande influência nas políticas públicas de vários países ao redor do mundo, sobretudo através do incentivo à criação de áreas protegidas integrais, onde as comunidades tradicionais têm sofrido forte impacto em seu modo de vida e cultura, quando não são expulsas ou deslocadas.
É exatamente essa influência o fato mais preocupante. Afi nal, são ONGs cujos laços com corporações transnacionais, muitas delas com assentos nos seus conselhos consultivos, são notórias.
A dimensão da influência e do impacto dessas estratégias é evidenciada pelos números citados por Diegues em sua Introdução. Atualmente existem “mais de 100 mil dessas áreas protegidas no mundo, muitas de proteção integral, cobrindo cerca de 20 milhões de km², superfície equivalente a do continente africano. (...) calcula-se que entre 10 a 14 milhões de pessoas foram expulsas dessas áreas, incluindo povos indígenas e tradicionais.
No Brasil, a superfície de áreas protegidas na Amazônia já supera os 10% do território (...)”.
Sem dúvida, o livro apresenta questões cruciais, com argumentos sérios e fundamentados.
Só esse fato é sufi ciente para suscitar um debate amplo envolvendo ONGs ambientalistas e demais organizações e movimentos sociais.
Questões de fundo
É verdade que, no livro, o Brasil está praticamente ausente. Mas isso não nos exime da tarefa de averiguar, pois as ONGs transnacionais adotam fi losofi as e práticas coerentes no Brasil ou em qualquer outro país, ainda que adaptadas às especifi cidades nacionais. Ademais, é notório que essas ONGs têm uma influência significativa no Brasil, o que nos leva a concordar com Diegues sobre a necessidade de pesquisar “a ação dessas grandes ONGs presentes no Brasil, suas estratégias e práticas conservacionistas, seus impactos sobre as políticas dos órgãos públicos, das quais participam ativamente, como é o caso do Projeto ARPA, os programas de identificação de áreas prioritárias para a conservação e, sobretudo, sobre as populações tradicionais, cujos territórios foram transformados em áreas de proteção integral com consequências semelhantes às que foram descritas por vários trabalhos desta coletânea”.
Além da ARPA, outro exemplo de sua infl uência é a participação dessas ONGs no Conselho Consultivo recém-formado pelo Ministério do Meio Ambiente.
Não se trata de transformar as citadas ONGs em réus. Mas sim de realizar uma refl exão crítica e uma avaliação das políticas e práticas não só das ONGs transnacionais, mas do conjunto do movimento socioambientalista.
Afinal, apesar de conquistas e avanços logrados nos últimos anos, os reveses têm sido muitos.
Lembremo-nos “apenas” das derrotas sofridas no CTNBio em torno da liberação dos transgênicos e dos enormes impactos causados pelas grandes obras implementadas a toque de caixa.
Outro tema crucial é a delimitação dos papéis e da relação entre os principais atores e segmentos: o poder público, os agentes do mercado e os representantes da sociedade civil. Não são poucos os planos e projetos que, em nome de causas nobres e sob o rótulo de “parceria”, estabelecem uma conciliação entre interesses antagônicos. Mas, em tais casos, quando as fronteiras entre o público e o privado desaparecem, já não se pode falar de “parceria” ou de “aliança”. As críticas presentes nos textos do livro de Diegues sugerem exatamente que por trás do conservacionismo de algumas ONGs pode estar a mão invisível de interesses estranhos à causa socioambiental.
Tais questões já vêm sendo debatidas, mas ainda de modo tímido e restrito. Não será hora de fazermos um debate aberto, colocando o dedo na ferida? Pensamos que sim. E, reafirmamos, o livro de Diegues é referência obrigatória. Deve ser lido e divulgado amplamente.
Temístocles Marcelos é membro da Executiva Nacional e coordenador da Comissão Nacional do Meio Ambiente da CUT;
Rui Kureda é militante ecossocialista e ex-assessor da Comissão Nacional do Meio Ambiente da CUT.
Para saber mais - Título: A ecologia política das grandes ONGs transnacionais conservacionistas Autor: Antonio Carlos Diegues (organizador) Editora: Nupaub – USP
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