Este texto foi escrito
em 2008, e a versão não foi revista ou editada. Mas apesar de suas claras
imperfeições e lacunas, decidi compartilhá-lo. Afinal, o regime cubano é ainda
visto por muitos como sendo “socialista” ou “Estado operário” e mantém ainda intacta
a sua aura revolucionária, ao contrário da arquiestalinista Coreia do Norte
que, apesar de ser mais coerente com o “modelo” stalinista ortodoxo da época da
Guerra Fria, conta com poucos defensores. Enfim, considero importante retomar o
debate sobre a “natureza” desses regimes, pois está relacionado diretamente ao
debate estratégico.
A renúncia de Fidel
Castro trouxe à berlinda o debate sobre Cuba e sobre o próprio papel do
dirigente revolucionário cubano. Foi capa de três revistas de grande
circulação, sendo que a Veja, notória por sua linha assumidamente conservadora,
foi a que expressou de maneira mais clara o ódio das classes dominantes com a
sua chamada: “Já vai tarde”. Esse ódio é bastante compreensível, pois Cuba vem
resistindo há 50 anos ao boicote econômico e aos ataques do imperialismo
norte-americano. E, a despeito de todas as dificuldades e sacrifícios, o povo
cubano veio apoiando, ao longo dessas cinco décadas, o governo de Fidel Castro,
dirigente da revolução que libertou o país da condição de “bordel” dos Estados
Unidos.
Diante da luta
titânica do povo cubano contra os Estados Unidos, todos os socialistas sempre
se posicionaram de maneira firme e inequívoca em defesa de Cuba. Porém, essa
mesma unanimidade na esquerda não existe quando a questão é a natureza do
regime cubano. E isso não é contraditório, pois o apoio de Cuba diante do
imperialismo não pressupõe a concordância com o regime cubano e nem com a
definição de que é um país socialista.
A revolução que
derrubou Fulgencio Batista em 1959 não foi uma revolução socialista. E isso não
é um julgamento que estamos fazendo posteriormente. Na ocasião nem os próprios
dirigentes revolucionários assumiam a condição de comunistas, e não tinham
intenção de lutar pela construção de um regime socialista em Cuba. Pelo
contrário, Fidel fazia questão de afirmar, logo após a revolução, que não era
comunista, e dizia que a revolução cubana era “verde oliva” e não “vermelha”.
Aliás, o papel do Partido Comunista Cubano no processo revolucionário cubano
despertava grande desconfiança em líderes da guerrilha, como Che Guevara.
Mas apesar de tais
declarações, o governo estadunidense não podia aceitar o novo regime que, mesmo
não se assumindo como comunista, expressava uma política radical, de
independência e soberania nacional, chocando-se com a política reacionária e
militarista dos EUA em plena “Guerra Fria”. Um mundo bipolar, em que
dificilmente um país podia se manter neutro, em cima do muro.
Em entrevista a Louis
Wiznitzer, enviado do Globo, no dia 24 de março de 1960, Fidel declarou:
“Eu tinha a maior
vontade de entender-me com os Estados Unidos. Até fui lá, falei, expliquei
nossos objetivos. (…) Mas os bombardeios, por aviões americanos, de nossas
fazendas açucareiras, das nossas cidades; as ameaças de invasão por tropas
mercenárias e a ameaça de sanções econômicas constituem agressões à nossa
soberania nacional, ao nosso povo”.
E foi a reação
norte-americana o grande fator que levou Cuba a integrar o bloco capitaneado
pela União Soviética.
O anúncio de que Cuba
estava iniciando a construção de um regime socialista, com o apoio do bloco
soviético, teve um tremendo impacto no mundo todo, em particular na América
Latina. Para os EUA era uma situação intolerável.
A União Soviética
(URSS) era, na época, a grande referência de socialismo. Contudo, já naquela
época o regime soviético era um tema polêmico na própria esquerda socialista e
revolucionária. Embora, a influência e o prestígio da URSS se devesse ao fato de
ter sido a primeira revolução socialista vitoriosa da história, com a revolução
de 1917, há muito tempo não havia qualquer elo entre os ideais e a política dos
dirigentes soviéticos e os ideais e a política que estiveram presentes na
revolução dirigida por revolucionários como Lênin e Trotsky. Desde a morte de
Lênin, a expulsão e exílio de Trotsky, profundas transformações ocorreram na
URSS, dirigidas por Stalin. Em vez de um regime radicalmente democrático,
baseado no poder a partir de baixo dos conselhos operários (sovietes),
instalou-se um regime centralizador, autoritário e repressivo, em que as
decisões eram impostas do topo. O regime stalinista era um regime de partido
único, sem liberdades, em que o planejamento econômico não era determinado pelas
necessidades sociais, mas pelas definições da burocracia que controlava o
poder. E a política stalinista abandonava o internacionalismo proletário, e em
seu lugar se estabeleceu uma política externa em que tudo era subordinado à
defesa da “pátria socialista”, mesmo que isso significasse uma política de
conciliação de classe com a burguesia e de traição aberta como nos casos da
Itália, França e Grécia, logo após o fim da II Guerra Mundial, entre outros
casos.
O líder soviético na
época da revolução cubana era Nikita Kruschev que no XX Congresso do Partido
Comunista da URSS em 1956, no momento em que assumiu o poder, denunciou alguns
dos crimes de Stalin e criticou o “culto à personalidade”. Mas o caráter do
“degelo” e a política de Kruschev ficaram bastante claros, meses após o seu
discurso em que denunciou os crimes de Stalin. Na Hungria havia surgido uma
revolta operária e popular que se voltava contra a burocracia local. Não era
uma revolta pela “restauração” do capitalismo, mas sim contra a presença soviética
no país e pelo “socialismo verdadeiro”. Como na Rússia de 1917, surgiram
conselhos operários que expressavam a auto-organização autônoma e independente
da classe trabalhadora. A resposta de Kruschev foi o envio de tanques para
esmagar impiedosamente aquele processo revolucionário que ficou conhecido como
a “revolução húngara”.
Assim, o “modelo”
socialista soviético era o modelo de um regime ditatorial unipartidário e
monolítico, que nada tinha a ver com o socialismo revolucionário. E o
socialismo cubano foi construído também nestes moldes, de cima para baixo. É
claro que havia um apoio popular ao governo revolucionário, pois o país recém
havia se libertado da opressão do governo reacionário de Batista, e o povo
estava firme na sua decisão de não aceitar as agressões e ameaças do
imperialismo norte-americano do qual Fulgencio Batista era um verdadeiro
serviçal.
Durante os anos 1960
Cuba realizou uma transição, integrando-se ao bloco soviético e adaptando a sua
economia, a organização política e social de acordo com esse modelo. Se após a
revolução havia discussões sobre a necessidade de uma diversificação econômica,
esta deu lugar a uma política econômica que se alicerçava nos tradicionais
produtos de exportação, sobretudo o açúcar. De país dependente dos Estados
Unidos, Cuba se tornou em um país dependente da URSS.
A ausência de
democracia e de liberdade também se tornou uma característica do regime cubano.
Já entre 1961 e 1965 perseguições, prisões e repressão levaram ao aniquilamento
do Partido Obrero Revolucionario (Trotskista) e seu jornal Voz Proletária.
Embora tenham apoiado e contribuído com a revolução cubana, os trotskistas
cubanos foram acusados de “contra-revolucionários”. Um processo tipicamente
stalinista.
Além disso, é preciso
assinalar outros aspectos da ausência de liberdade, como o caráter homofóbico
do regime cubano. Desde o início os homossexuais cubanos foram perseguidos
impiedosamente. Também não são tolerados quaisquer movimentos, não apenas
políticos ou culturais autônomos, sob pena de repressão. Mesmo o movimento hip
hop cubano sofreu perseguições até o reconhecimento oficial do hip hop como
“autêntica” manifestação cultural cubana e a criação da Agência Nacional do
Rap. Um reconhecimento condicionado à aprovação e controle estatal…
Durante as décadas
seguintes Cuba se afirmou como referência política, principalmente na América
Latina. Um exemplo trágico foi a influência do foquismo, inspirado pelo livro
de Régis Debray que procurou sistematizar a experiência revolucionária cubana.
Uma estratégia militarista baseada na guerrilhas, em que o trabalho de
organização e de desenvolvimento da consciência de classe proletária era
secundarizada se não inexistente, passou a exercer enorme influência na América
Latina, com resultados desastrosos.
No Brasil, essa
influência foi acentuada pelo fracasso da estratégia nacional-reformista do
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Inúmeras organizações optaram pela luta
armada, mas mantendo o essencial do programa pecebista, que preconizava uma
revolução nacional, democrática e popular, em vez de uma revolução socialista e
proletária. É dessa época uma concepção ainda vigente em setores da esquerda,
de que a diferença entre a política revolucionária e a política reformista
estaria no método e não no conteúdo político da estratégia e da tática.
A crise do stalinismo
em escala internacional, com a queda do Mudo de Berlim e o colapso da URSS,
teve um impacto profundo sobre Cuba, obrigando o país a enfrentar uma
conjuntura adversa, de globalização neoliberal e predomínio ideológico do
neoliberalismo, em uma situação de isolamento político. A economia cubana
sofreu reajustes que significaram uma abertura parcial para o mercado
internacional, como a promulgação da Lei de Inversões Estrangeiras de 1995,
criando “empresas mistas”, controladas pelo capital estrangeiro, o fim do
monopólio estatal do comércio exterior permitindo que as empresas, estatais e
mistas, façam seus negócios de maneira direta e livre. Como resultado, inúmeras
empresas estrangeiras passaram a atuar em solo cubano, através das empresas
mistas e de joint-ventures. A ETECSA, companhia telefônica de Cuba, foi
privatizada e vendida ao Grupo Domos, do México, em parceria com a italiana
Stet. O turismo em Cuba conheceu, em particular, um grande crescimento,
trazendo divisas para o país.
Entretanto, todas
essas mudanças também trouxeram problemas sérios, como o aumento da
desigualdade social, o surgimento do mercado negro e da prostituição.
É preciso reafirmar o
que foi dito no início deste texto. Qualquer socialista tem a obrigação de
defender Cuba e seu povo da ameaça imperialista. Mas esse apoio não pode significar
um apoio político incondicional ao regime cubano. E muito menos adotar uma
visão de que, apesar dos problemas, o socialismo existe em Cuba.
Muitos podem
argumentar que não existe um “modelo” de socialismo. E que o socialismo cubano
seria um socialismo peculiar tanto às características econômicas, políticas e
culturais de Cuba, quanto ao processo específico da revolução cubana.
É verdade, não é
possível e seria incorreto definir um modelo. Da mesma forma que o surgimento e
a consolidação do capitalismo em escala planetária expressaram diferenças
significativas de país para país. Contudo, o modo-de-produção capitalista tem
características e traços essenciais que são comuns, como a acumulação de
capital, a exploração de classe, a ausência de uma verdadeira democracia que
possibilite um real controle social sobre a vida da sociedade.
Da mesma forma, o
socialismo tem pressupostos fundamentais, todos ausentes em Cuba. Não há
democracia real, nem uma participação efetiva das massas nas decisões. O regime
cubano sempre foi um regime para a população trabalhadora, e não um regime da
população trabalhadora.
Qualquer planejamento
econômico socialista exige a democracia direta da população através de seus
organismos de auto-governo. Do contrário, as definições e decisões cabem apenas
a uma camada social que determina o que e quanto deve ser produzido, determina
o salário a ser pago aos trabalhadores e define o destino do excedente
econômico.
A democracia é um
pressuposto para que a propriedade seja não meramente estatal, mas social. Sem
democracia, a propriedade estatal está sob controle da burocracia que controla
e domina o aparelho estatal.
Portanto, não é
possível dizer que Cuba é socialista. Os ganhos da revolução de 1959 estão
presentes ainda na consciência de amplos setores da população cubana. E as
melhorias notáveis em campos como a educação e a saúde são fatos
inquestionáveis, mas que de maneira alguma significam que exista um regime
socialista em Cuba.
O regime de Fidel
conseguiu sobreviver a 5 décadas de cerco. Esse fato se deve ao apoio do povo à
revolução cubana, ao fato de que a revolução de 1959 pôs um fim à condição de
“bordel dos EUA” e conquistou a independência nacional. Mas por mais
importantes que sejam todas essas conquistas, o regime cubano está longe de ser
um regime socialista.
Quais serão os rumos
do novo governo de Raúl Castro? Esta é a grande pergunta que tem sido feita.
Aparentemente, Raúl parece ser favorável a maior abertura da economia cubana. E
já vem buscando aproximação com a China, além das parcerias estabelecidas com
países latino-americanos como o Brasil, Venezuela e Argentina. Mas independente
do que nos reserva o governo de Raúl, o fato é que não existem muitas opções:
ou o aprofundamento das reformas pró-Mercado ou o socialismo. Quanto ao caminho
do socialismo, este dependerá não do regime de partido único atual, mas sim do
protagonismo e da ação da classe trabalhadora e dos pobres de Cuba.