quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

“Sustentabilidade só para enfeite”

MEIO AMBIENTE Conjugar desenvolvimento econômico e sustentabilidade ambiental é contraditório, diz Jean-Pierre Leroy

Rio Renato, afl uente do Rio Teles Pires, localizado na região da fl oresta amazônica ameaçada pela expansão da agropecuária, no município de Itaúba (MT) - Leonardo F. Freitas/CC

Rui Kureda de São Paulo (SP)

A AGENDA socioambiental foi intensa em 2007. Questões como a transposição do rio São Francisco, a retomada de Angra 3 e a política de agrocombustíveis ocuparam as manchetes dos jornais, gerando debates e mobilizações sociais. O Brasil de Fato entrevistou o destacado ambientalista Jean-Pierre Leroy sobre os dilemas e as perspectivas dessa luta no Brasil.

"Em relação ao São Francisco, vemos os setores governamentais acusarem de modo descarado os ambientalistas “que não conhecem a sede” de quererem impedir o desenvolvimento"


Brasil de Fato – Qual sua avaliação sobre as lutas de 2007, como os atos contra o leilão das usinas hidrelétricas do rio Madeira e a resistência contra a transposição do rio S. Francisco? 

Jean-Pierre Leroy – – Você menciona dois projetos que de fato são emblemáticos dos dilemas, impasses e desafios que a sociedade brasileira enfrenta.
Não deveriam, todavia, nos fazer esquecer uma série de obras e empreendimentos, menores individualmente, mas que, no seu conjunto, representam graves ameaças de um ponto de vista socioambiental: mineração, plantio de eucaliptos, expansão das monoculturas, agora também para agrocombustíveis, a expansão descontrolada da pecuária na Amazônia, termoelétricas a carvão, a volta anunciada da energia nuclear, as sementes transgênicas etc.
Aproveito para dizer que a palavra “socioambiental”, que para mim signifi caque a vida e a história da humanidade e da natureza são intrinsecamente ligadas, já está sendo descaracterizada. Empresas qualifi cam a sua intervenção como socioambiental.
Certas correntes ambientalistas a condenam, pois parecem pensar que o ser humano, em particular as comunidades e grupos sociais que vivem da natureza ou inseridos nela, são, a priori, suspeitos de querer acabar com ela.
Mas volto ao Madeira e ao São Francisco.
Descobrimos que as leis e as normas de aplicação dessas leis são feitas para serem ignoradas e “tratoradas”, inclusive pelo poder público, que deveria zelar por elas. Descobrimos que as consultas à população só valem para confi rmar o que um poder absoluto decidiu.
Digo “poder absoluto”, pois o Executivo federal afi rma falar e decidir em nome do povo, o que lhe dispensa de escutar a voz do povo quando parte deste discorda dele. Mas também vimos que vale a pena lutar e que não podem calar ou ignorar a voz e as lutas populares. Tornamonos, os que lutam por um país diferente, muito mais socioambientais.


Um debate de importância particular refere-se à relação entre desenvolvimento econômico e social e sustentabilidade ambiental. Como você vê essa questão?

A partir do momento em que se formulam assim os termos do debate, está estabelecida a contradição e o impasse.
É justamente o que dizem em relação às usinas do Madeira e à transposição.
Meio ambiente, tudo bem, mas tem que dar trabalho, e para isso, a economia tem que produzir. Sustentabilidade está lá só para enfeite. Aliás, mudou totalmente de sentido. Fala-se com a maior seriedade da sustentabilidade econômica, mesmo que seja às custas da sustentabilidade ambiental.
Em relação ao São Francisco, vemos os setores governamentais acusarem de modo descarado os ambientalistas “que não conhecem a sede” de quererem impedir o desenvolvimento. Digo “descarado”, pois sabem muito bem que os ambientalistas não são os únicos, nem os mais numerosos que questionam a obra e que são legítimos nordestinos que estão nessa luta. Para mim, é o que chamam de “desenvolvimento econômico e social” que, a médio prazo, vai mostrar que está falido. 
Não há como pensar em um verdadeiro desenvolvimento sem que a variável ambiental esteja no coração desse debate.
Frente à industrialização exportadora do Nordeste e à transformação da sua agricultura e pesca numa base do agronegócio sofi sticado para a exportação, o desenvolvimento baseado na convivência com o Semi-Árido representa a verdadeira modernidade e sustentabilidade.

Com relação ao atual ciclo de crescimento econômico brasileiro, podemos afi rmar que este está ocorrendo sobre bases ambientalmente sustentáveis?

Veja: o nosso “atraso” em relação aos países ditos desenvolvidos podia ser uma chance para nós. Não precisávamos repetir as burrices e as catástrofes que estão produzindo, como vemos com a crise climática. Mas não. A maioria do que se convenciona chamar de elites, econômica e política, continuam com a cabeça e a carteira orientadas em direção ao Norte. Poderiam inventar uma agricultura tropical, mas não: copiam o modelo de país temperado. Poderiam democratizar a terra e interiorizar realmente o país, mas não: acham que o barato é a grande produção rural. Poderiam ter entendido que a ponta do progresso na Amazônia seria fazer desse ecossistema uma poderosa fonte de novos produtos e riquezas sociais, combinando tradição, conhecimentos e cultura dos seus povos e população com a inovação científica. Mas acham mais fácil abrir a região a grandes obras e repetir o mesmo tipo de pensamento e de desenvolvimento.

A Amazônia continua sendo um dos principais focos de preocupação do movimento socioambiental. Na sua opinião, houve progressos no combate ao desmatamento na Amazônia?

O governo realmente se mobilizou: criação de mais áreas de conservação de vários tipos – sei que vão dizer que são áreas de conservação “de papel”, mas contribui para inibir, em parte, a devastação –; aumento da fi scalização e busca de moralização e combate à corrupção de funcionários; licitação de fl orestas públicas; recenseamento em curso das terras públicas na região. Mas o recrudescimento dos desmatamentos e queimadas mostra a fragilidade dessas iniciativas.

É verdade que é preciso tempo para reverter uma devastação iniciada há mais de 500 anos. Porém, os recursos humanos e fi nanceiros para tocar as áreas de conservação, sejam as integrais, sejam as em que comunidades possam viver, seguem a conta-gotas. As multas não são pagas. A maioria dos políticos da região luta aberta ou veladamente para que nada seja feito para mudar a (des)ordem das coisas. A grilagem corre solta, os madeireiros convencem ou driblam os fi scais. E o preço da carne e dos grãos aumenta, impulsionando mais destruição.

O violento aumento do desmatamento em Rondônia é paradigmático. Combina tudo o que acabo de mencionar. E os que vão lá para enriquecer e prosseguem na destruição têm razão: há pouca chance de que algo lhes aconteça. Lembro quando, há mais de 30 anos, grileiros chegaram ao sul do Pará. Hoje, eles, ou quem os sucedeu, vendem seu gado para moderníssimos frigorífi cos exportadores.
As obras do rio Madeira franquearam a região para quem quiser participar dessa nova corrida ao ouro. Bem, se você não tem dinheiro ou vocação para a truculência e amigos poderosos, não se deixe seduzir. As cidades da Amazônia são cheias de gente que acreditou no Eldorado e acabou na rua da amargura.

O combate ao desmatamento na realidade tem que ser um combate a tudo que está ai. Ao mesmo tempo, sem que se ofereçam condições de vida e alternativas produtivas para a população rural e fl orestal e os povos indígenas – coisa que leva tempo e necessitaria de políticas públicas sistemáticas e de longo prazo – essa população e esses povos não têm condições de formar uma muralha contra o assalto à fl oresta. Por isso é tão difícil.

"Os povos [da Amazônia] não têm condições de formar uma muralha contra o assalto à floresta"

Recentemente foi realizado o Fórum Amazônia Sustentável (FAS). Você divulgou um documento crítico em relação ao evento. Que questões estavam colocadas na ocasião?

Pessoas de ONGs atuando na Amazônia, de organizações de povos indígenas, de extrativistas e de pequenos produtores, setores empresariais, diretamente ou por meio de fundações realizaram um evento em Belém chamado FAS. Vemos cada vez mais, nos grandes meios de comunicação, as grandes empresas se apresentarem como campeões do meio ambiente. Querem agora reforçar o seu cacife mostrando que dialogam com os setores populares da sociedade amazônica e que estão na linha de frente por uma Amazônia sustentável. 

Questionei basicamente três coisas: 

1) Há empresas que têm um enorme passivo ambiental e social.  Antes de dialogar com elas, elas precisariam mostrar que efetivamente mudaram.

2) As organizações populares, sindicais e indígenas na Amazônia mal conseguem defi nir qual é o seu projeto para a região. Não seria melhor que organizem um tipo de congresso entre elas para avançar um projeto coletivo, e só depois ir conversar com as grandes empresas? 

3) Há ONGs fortes que fazem um trabalho importante na Amazônia Mas não devem substituir a voz da população e dos povos amazônicos.

Os agrocombustíveis (etanol e biodiesel) têm sido apresentados como solução diante da perspectiva de esgotamento das reservas petrolíferas e como alternativas energéticas limpas e renováveis. Você concorda?

O Brasil de Fato já tratou bastante do tema e não teria muito a acrescentar. Em breve, vamos publicar as conclusões de um seminário realizado pelo GT Agricultura da Rebrip, Oxfam e Fase. A I Conferência Nacional Popular sobre Agroenergia nos ajudou a entender essa questão.

Em síntese: 
a) não se mexe no modelo de transporte individual, inviável nos grandes centros urbanos, qualquer que seja o combustível; 
b) reforça o modelo agroexportador, a monocultura e o latifúndio.
Como era de se esperar, o programa do Biodiesel, idealizado pelo governo federal para o pequeno produtor rural, com muitos problemas, é rapidamente ultrapassado pela produção dos grandes produtores, de soja em particular; 
c) tem toda chance que produza impactos sociais e ambientais perversos; aliás, já está produzindo;
d) já está afetando a segurança alimentar mundial. É um dos fatores responsáveis pelo aumento dos preços dos alimentos verificado no mundo.

Em compensação, não faltam experiências que mostram pequenos produtores, assentamentos, cooperativas produzindo agrocombustível sem colocar em risco, pelo contrário, a produção de alimentos, primeiro para seu uso e o uso local. Uma das grandes batalhas será conquistar mudanças na legislação que lhes permitam se tornarem produtores de energia, numa visão de descentralização real, voltada para o mercado local.

Na sua opinião, quais são as grandes questões e desafi os postos aos movimentos socioambientais para o próximo período?

Fazer com que todos os movimentos se reconheçam como socioambientais. Conseguir mostrar à opinião pública, para além dos movimentos, que não há saída com esse modelo de produção e de consumo e que muitas organizações populares já apresentam alternativas. Não se deixar encerrar numa ecologia de resultados nem se prender à lógica do mercado e do Estado desenvolvimentista.
Reprodução

Quem é

Mestre em Educação, Jean-Pierre Leroy estuda a fl oresta amazônica há mais de 30 anos e morou no Pará, onde conheceu e tornou-se amigo da irmã Dorothy Stang. Participou da Relatoria para o Direito ao Meio Ambiente e é técnico da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase).




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